Embora o Brasil se encontre em um estado avançado no que se refere à transição energética, novas tecnologias e novos vetores energéticos são fundamentais para alcançar a ambição climática de neutralidade líquida em gases de efeito estuda (GEE) até 2050.
Além disso, é necessária, em curto prazo, uma profunda mudança nas emissões decorrentes das dinâmicas do uso da terra e do desmatamento. Se até o fim desta década o país não conseguir eliminar o desmatamento ilegal, não há viabilidade técnica e realista para zerar os GEE até 2050, como prevê compromisso nacional no Acordo de Paris.
A conclusão é de um estudo inédito, feito em parceria entre o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e o Centro de Economia Energética e Ambiental (Cenergia), da Coppe/UFRJ.
O relatório final do “Programa de Transição Energética” apresenta três cenários distintos de transição energética para o país até 2050 — “Transição Brasil”, “Transição Alternativa” e “Transição Global”. Os cenários são usados para explorar diferentes opções de mitigação de emissões, apresentando trajetórias de emissão convergentes com objetivo de neutralidade de carbono no Brasil até meados do século.
Os cenários “Transição Brasil” (TB) e “Transição Alternativa” (TA) são construídos com base nos compromissos assumidos pelo país em sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), buscando indicar trajetórias ótimas custo-eficiente para o país a partir de diferentes perspectivas sobre como evoluem as políticas públicas, os consensos sociais, os comportamentos de empresas e consumidores, e como se desenvolvem e difundem novas tecnologias.
Já no cenário “Transição Global” (TG), a trajetória de descarbonização é moldada a partir da contribuição do Brasil em um mundo alinhado para limitar o aumento médio da temperatura superficial global em até 1,5°C.
Dinâmicas distintas
Com uma matriz energética em que aproximadamente metade da energia primária provém de fontes renováveis, o Brasil tem uma das matrizes mais convergentes com uma economia de baixo carbono, apresentando uma renovabilidade três vezes acima da média mundial (14% em 2019).
Porém, a análise das trajetórias de descarbonização relativas aos próximos 30 anos, apresentadas nos três cenários, mostram dinâmicas para a matriz energética distintas das observadas nas últimas três décadas, com novos desafios e oportunidades para o Brasil.
Os três cenários de descarbonização incorporam as mudanças estruturais para os setores de oferta e demanda de energia, bem como de uso da terra (agropecuária e florestas) necessárias para alcançar a neutralidade climática no Brasil na década de 2050.
Para os cenários TB e TA seriam evitadas, aproximadamente, 30 bilhões de toneladas equivalentes de CO2 no horizonte. Para o cenário TG, o esforço de mitigação de emissões é ainda maior, alçando cerca de 40 bilhões de toneladas equivalentes de CO2 no período.
Para que a neutralidade em GEE seja alcançada no horizonte de 2050 é necessário haver emissões negativas de CO2 (o principal GEE) em torno de 2035-2040, ou seja, uma década antes do momento de alcance da neutralidade em GEE no país. Nos três cenários de descarbonização, as emissões de CO2 se tornam negativas em torno de 500 milhões de toneladas, dimensionando o tamanho do desafio.
Os primeiros resultados do estudo apontam uma série de desafios para o Brasil alcançar a neutralidade em carbono até 2050: tendência de crescimento na demanda por energia, a necessidade de se atualizar e até criar marcos regulatórios para a transição energética e o fato de novas tecnologias e infraestrutura ainda demandarem desenvolvimento, escala e competitividade.
“O Programa de Transição Energética é importantíssimo para a EPE e para o Estado brasileiro, pois contribui para formar consensos sobre dilemas, incertezas, desafios e oportunidades para os stakeholders e a sociedade como um todo. Ao adotar uma abordagem com múltiplos participantes, permite também ratificar ou contestar condicionantes ou informações específicas para o processo de delinear cenários e trajetórias”, afirma o presidente da EPE, Thiago Barral.
“Os resultados do Programa mostram que o Brasil pode se posicionar como um hub energético global, liderando uma transição energética justa, inclusiva e eficiente. Para isso, será necessário aprimorar e criar marcos legais e regulatórios adequados e mobilizar grandes investimentos. O BID está pronto para continuar apoiando técnica e financeiramente nesses dois eixos fundamentais para catalisar esse processo”, afirma Morgan Doyle, representante do Grupo BID no Brasil.
Custo de compensação pode chegar a US$ 3,4 trilhões
Face à necessidade de haver emissões negativas de CO2 em 2040, na ausência de eliminação das emissões oriundas de desmatamento e mudança do uso da terra, o setor energético precisaria compensar parcialmente as emissões destas fontes e ao mesmo tempo lidar com as emissões remanescentes de GEE dos setores de difícil abatimento de emissões (hard-to-abate), como transporte de carga a longa distância e processos industriais carbono-intensivos, tornando a transição energética ainda mais onerosa e, portanto, um fator de perda de competitividade.
Desta forma, caso o país não consiga eliminar o desmatamento ilegal nesta década, encontra-se uma impossibilidade de viabilidade técnica e realista para que as emissões de GEE sejam zeradas em 2050, fazendo com que o país tenha que compensar suas emissões, se tornando um comprador (e não um vendedor) de créditos de carbono.
De acordo com o relatório, eliminar o desmatamento ilegal significa evitar o lançamento na atmosfera de 21 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa até 2050. Caso isso não aconteça, o Brasil terá que arcar com um custo de compensação de até US$ 3,4 trilhões para atingir os compromissos assumidos por sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês), considerando as perspectivas mais elevadas de preços de carbono no longo prazo.
O perfil de emissões no Brasil é completamente distinto do perfil global. No mundo, o setor energético representa 76% das emissões totais líquidas de gases de efeito estufa. Já no Brasil, onde quase metade da matriz é renovável, esse setor representa apenas 31% das emissões líquidas, e 18% das emissões brutas.
De fato, o estudo aponta que o segmento de uso da terra dispõe de opções para remoção natural de carbono (chamadas soluções baseadas na natureza — NBS), que além de remover carbono geram um conjunto de co-benefícios socioambientais.
“O Brasil detém 20% das melhores oportunidades de soluções baseadas na natureza, ou seja, oportunidades custo-eficientes. Na década de 2020-2030, deve ser uma das prioridades aproveitar este potencial, conciliando a agenda climática e social gerando valor a partir da floresta em pé. No caso brasileiro, é possível conciliar objetivos alimentares, energéticos e ambientais, por meio da conversação de 60-85 milhões de hectares de pastagens degradadas em florestas nativas, florestas energéticas plantadas e agropecuária sustentável”, observa a senior fellow do Cebri Rafaela Guedes.
Portanto, é muito relevante o papel redutor de emissões oriundo das mudanças positivas no uso da terra, com destaque para o reflorestamento e a restauração de florestas. E nesta frente, o estudo lança luz para um nexo importante com a oferta de energia. Projeta-se, por exemplo, um incremento entre 3-6 milhões de hectares de florestas plantadas (eucalipto e pinus) em áreas degradadas para atender à demanda por biomassa para a produção de biocombustíveis celulósicos em substituição aos combustíveis fósseis.
Uma matriz energética brasileira ainda mais renovável
Ao avaliar a matriz energética, o documento traz insights importantes para as próximas décadas. A demanda de energia primária, por exemplo, passará de 268 milhões teps (tonelada equivalente de petróleo) em 2020 para cerca de 400 milhões de teps em 2050. Em contrapartida, haverá queda da utilização de combustíveis fósseis e aumento do uso de fontes renováveis com destaque para os biocombustíveis avançados. O estudo também indica que as fontes renováveis superarão a participação de 70% na matriz energética primária.
Nos três cenários, até os anos de 2030, o etanol e o biodiesel, biocombustíveis convencionais, responderão pela maior parcela da oferta de bionergia. Porém, o estudo aponta que, a partir de 2040, ganham destaque os biocombustíveis avançados, produzidos por meio de diversas rotas tecnológicas, tais como: o diesel verde, o bioquerosene de aviação, a gasolina verde e os biocombustíveis para uso marítimo que despontam como o principal vetor de substituição aos combustíveis fósseis.
A utilização de biocombustíveis avançados se expande por dois motivos principais: (i) descarbonização de segmentos do setor de transportes mais difíceis de serem eletrificados, como o aéreo, o marítimo e o transporte de cargas; (ii) captura e armazenamento do CO2, que permitem gerar abatimento de emissões de outros setores.
Com seu papel de descarbonizar o gás natural e a possibilidade de aproveitamento da infraestrutura de gás, o biometano se mostra como uma fonte importante para atingir as metas climáticas. Nos três cenários, ele alcança, em 2050, uma demanda entre 15-18 milhões de m3/dia.
O estudo analisou ainda as perspectivas para o hidrogênio. O maior destaque é para sua aplicação indireta, ou seja, o hidrogênio entra como insumo intermediário na produção de gás de síntese que na reação química final por meio da captura de carbono produz combustíveis sintéticos descarbonizados (como, por exemplo, querosene de aviação ou diesel) e a utilização em células a combustível alimentadas por biocombustíveis.
O estudo também explorou um cenário em que se projeta um potencial de exportação de hidrogênio verde (obtido por eletrólise com eletricidade de fontes renováveis: quebra da molécula da água usando como energia fontes renováveis tais como solar ou eólica) da ordem de 4 milhões de toneladas em 2050, o que pode representar 10% das exportações globais de hidrogênio neste horizonte.
Em todos os cenários, projeta-se um forte crescimento da demanda por eletricidade, que vai requerer expansão da capacidade de geração, respondida predominantemente pelas fontes eólica e solar, com consequente redução da participação relativa da hidreletricidade no parque gerador. Isto reflete, por um lado, as limitações à construção de novos projetos hidroelétricos com barragem em virtude do impacto ambiental e social causado e, por outro lado, a própria competitividade destas fontes renováveis.
A participação de fontes renováveis na geração elétrica brasileira continuará a se ampliar, ultrapassando a marco de 90% do mix elétrico. O crescimento da demanda por eletricidade é acompanhado por uma consequente necessidade de expansão das linhas de transmissão do Sistema Interligado Nacional (SIN), para comportar o aumento do fluxo de eletricidade, ampliando-se entre 181-221 GW até 2050.
Os desafios do setor de óleo e gás
Até 2050, o consumo de derivados de petróleo no Brasil apresentará forte queda. Contudo, a produção brasileira de O&G poderá continuar sendo relevante para se manter como um potencial exportador de petróleo e atender à demanda remanescente em 2050.
Como o próprio documento destaca, o petróleo brasileiro apresenta tripla resiliência (técnica, econômica e ambiental) e tem uma das menores intensidades de carbono no mercado internacional. Segundo a Rystad, a média do petróleo no mundo é de 22 quilos de CO2 por barril de óleo equivalente produzido (kg CO2 /b), enquanto a do Brasil é de cerca de 15 kg CO2 eq/b (sendo que o pré-sal chega a 10kg CO2 eq/b). Além disso, mantém-se como vetor para garantir a segurança energética dos países ao longo do processo de transição.
“Com um petróleo de baixa intensidade de carbono e baixo custo, a riqueza gerada pela indústria de O&G contribuirá para financiar a transição energética e as inovações necessárias para a neutralidade de carbono no Brasil até 2050” afirma Jorge Camargo, Vice-Presidente do CEBRI e coordenador do núcleo Energia.
A produção de gás natural tem comportamento similar à do petróleo sendo que seu consumo segue sendo prioritariamente nacional. O consumo doméstico de GN perde sua relevância no setor elétrico, mas se intensifica no uso residencial e na indústria, puxado pelos setores de química, cimento e cerâmica, entre outros.
Conciliar crescimento da demanda com redução de emissões
Atualmente, as emissões decorrentes do uso de energia no Brasil correspondem por apenas 18% das emissões totais, sendo que os setores de transportes, industrial e residencial respondem por mais ¾ desta parcela das emissões. Como cada setor da economia se comporta nos cenários desenvolvidos pelo “Programa de Transição Energética”?
Os cenários indicam que a descarbonização desses setores enfrenta ao menos três grandes desafios: (1) a tendência esperada de crescimento na demanda por serviços energéticos, refletindo o crescimento populacional e econômico.
Assim, o maior desafio destes setores será conciliar essa tendência de crescimento na demanda com a sustentabilidade; (2) para algumas aplicações, as soluções tecnológicas para mitigar emissões ainda precisam de desenvolvimento e escala; e (3) seus custos de implantação ainda são elevados e mecanismos de financiamento e incentivo se mostram incipientes.
No segmento de transporte, o Brasil já se destaca globalmente, com uma participação de 25% de energias renováveis (biocombustíveis) em comparação aos menos 5% na média mundial. A existência de uma indústria de biocombustíveis consolidada ao longo de décadas, uma rede de abastecimento de abrangência nacional e elevada participação de veículos flexfuel na frota delineia uma vantagem competitiva para o país, que conta com soluções de descarbonização que antecedem em muitos anos o processo de eletrificação, movimento que vem ganhando tração em diversas regiões do mundo.
Como desdobramento, os biocombustíveis (especialmente os avançados a partir da década 2040) se configuram como o principal vetor de descarbonização do segmento de transporte no Brasil. Não obstante, como os movimentos e estratégias globais da indústria automotiva apontam cada vez mais para a introdução de veículos elétricos, os cenários apontam a eletrificação em nichos de mercado e de forma mais abrangente no cenário Transição Alternativa.
Adicionalmente, os cenários chamam a atenção para as diferentes vertentes de eletrificação do transporte (que não apenas via veículos a bateria), de forma que é central desenvolver soluções nacionais que se insiram internacionalmente na cadeia global de valor da indústria automotiva, como, por exemplo, o desenvolvimento de veículos elétricos a célula combustível a partir de etanol e a disseminação da tecnologia híbrido flex para outros mercados.
O setor industrial contribui para as emissões totais do país tanto pela queima de combustíveis fósseis quanto por seus próprios processos produtivos. Ganhos de eficiência, maior penetração de gás natural e biomassa se apresentam como os principais vetores de descarbonização nos cenários.
O maior desafio deste segmento é encontrar soluções para as áreas de metalurgia e fabricação de cimento, que respondem pela maior parte das emissões do setor e apresentam emissões que são intrínsecas a seus próprios processos de produção, demandando tecnologias disruptivas de descarbonização.
No setor residencial e de serviços projeta-se um crescimento de aproximadamente 60% na demanda energética, refletindo o aumento da renda média, ampliação da posse de equipamentos eletrônicos e digitalização de atividades, bem como a ampliação no número de unidades consumidoras.
Para atender a este crescimento com redução de emissões, a eletricidade se consolida como a fonte mais importante. Adicionalmente, os cenários apontam para uma forte substituição do gás liquefeito de petróleo (GLP) pelo gás natural para as aplicações de cocção de alimentos e aquecimento, fazendo com que a demanda de gás natural quase que decuplica entre 2020 e 2050 neste setor.
Propostas para a transição energética
O relatório apresenta nove propostas para a transição energética. Elas abrangem compromissos públicos e privados e reforçam a meta brasileira de contribuir decisivamente para o objetivo global de reduzir as emissões de GEE e limitar o aquecimento global. São elas:
- Adotar agenda de política energética e desenho de mercados que crie condições para caminhos flexíveis de descarbonização;
- Harmonizar objetivos de desenvolvimento sustentável, transição energética e segurança energética, aproveitando o potencial de recursos e as oportunidades de mercado e inovação para o Brasil;
- Minimizar arrependimentos mediante abordagens de mercados abertos, diversos e competitivos;
- Aproveitar vantagens competitivas existentes no Brasil para construir e financiar vantagens competitivas do amanhã, requalificando ativos e migrando expertises;
- Cumprir objetivos/metas já estabelecidas pelo país em linha com o compromisso de neutralidade climática (líquida);
- Assegurar que o setor energético brasileiro tenha uma transição justa, inclusiva e custo-efetiva;
- Aperfeiçoar ou estabelecer arcabouços institucional, legal e regulatório que promovam o desenvolvimento e adoção de tecnologias e modelos de negócios com foco na redução de emissões e remoção de carbono de emissões de gases de efeito estufa;
- Mapear, detalhar e disseminar informações sobre potencial técnico, econômico e de mercado para as alternativas identificadas nos diferentes cenários;
- Aprofundar estudos sobre resiliência climática das soluções energéticas encontradas no projeto.
Conheça o estudo na íntegra: https://cebri.org/br/doc/309/neutralidade-de-carbono-ate-2050-cenarios-para-uma-transicao-eficiente-no-brasil